segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Que bem me lembro, carago!

Passei toda a minha infância, e parte da minha juventude, a ver o Benfica ganhar, o regime a protegê-lo, os árbitros a ajudá-lo, os jornais a enaltecê-lo e a televisão a lavar o cérebro aos Portugueses, com o Eusébio para aqui, o Simões para acolá, e o resto da equipa para todos os lados.

Benfica com o Presidente da República Portuguesa, Américo Thomaz

O Domingo abria e encerrava com dois ofícios religiosos, a Missa de manhã, que frequento, e o Domingo Desportivo à noite, com a homilia sempre a cargo de um comentador fanaticamente benfiquista, enquanto os Portugueses, boquiabertos com o fenómeno da televisão, que recentemente aparecera, confundiam a beleza desta tecnologia com a pretensa beleza da maneira de jogar do Benfica.
O futebol em Portugal era assim como que um torneio da segunda circular, com o Benfica, por lei tácita, a ganhar pelo menos mais quatro vezes que o Sporting.
Claro que os “clubes da província” também nele podiam jogar, desde que não tivessem a ousadia de o tentar ganhar, só para dar graça ao torneio, como as bandas de música abrilhantam os dias de festa das nossas aldeias.
Que bem me lembro, carago!
Como eu chorei tantas vezes ao ver o meu clube espoliado, roubado no campo e no mais profundo da sua alma.
Algum dos meus leitores se recorda do tempo em que o presidente da Federação Portuguesa de Futebol era escolhido exclusivamente pelo Benfica, Sporting e Belenenses?
A primeira meta que Pinto da Costa se propôs atingir, como director do departamento de futebol do FC Porto – no que foi ajudado por José Maria Pedroto – foi alterar esta hegemonia lisboeta, tantas vezes mantida de forma pouco lícita.

Pedroto, Pinto da Costa e Domingos Gomes,no dia do jogo de Ademir

Em 1978 eu vivia em Lisboa, onde frequentava a Faculdade de Direito da Universidade Clássica.
Em Lisboa conhecia poucos portistas, e os que conhecia eram do Porto, que ali também viviam, por razões escolares ou profissionais.
Um dia, em 1978, eu e mais três amigos, dois do Benfica e um do Sporting, viemos a Porto, onde, pelas 15h00, o FC Porto e o Benfica jogariam nas Antas o penúltimo jogo do campeonato nacional, da época de 1977- 1978.
O Porto tinha então 47 pontos, e o Benfica 46.
O estádio estava a abarrotar, com a presença de perto de 60.000 pessoas – nessa altura os estádios de futebol não tinham cadeiras, pelo que, à excepção dos cativos, aqueles que ficavam debaixo da cobertura, todos os assistentes ao jogo ficavam de pé, completamente apertados, cabia sempre mais um. Nessa altura ainda não se tinha feito o rebaixamento do estádio que, quando concluído, elevou a capacidade do estádio para 90.000, quando cheio da mesma forma acima indicada.
A pista de atletismo/ciclismo em torno do relvado era larga e, entre esta e a parede onde as bancadas terminavam, existia um fosso de meio metro de profundidade e uns dois metros de largura. No fosso, chamado “peão”, havia dois ou três degraus, e apoiada na parede, atrás de quem se encontrasse no peão, a olhar para o relvado, uma rede alta impedia que quem estivesse no peão saltasse para a bancada e que quem estivesse na bancada invadisse o relvado, saltando por cima do peão.
Foi no peão que eu e os meus três amigos ficámos, por já não haver bilhetes para qualquer outro lugar no estádio.

Estádio das Antas no dia da inauguração. A colocação desta fotografia
serve apenas para se apreciar a pista de atletismo/ciclismo e o peão

O calor era insuportável, as pessoas acotovelavam-se no peão, ao ponto de parecer que sufocavam.
Dos quatro, o sportinguista, que viera apenas para ver como era, conseguiu saltar a rede para a bancada e desapareceu num mar de gente. Só no fim o voltámos a ver.
Os dois benfiquistas, que me acompanharam na esperança de virem ver o Benfica inverter a pontuação na tabela, ficaram ao meu lado esquerdo. Ao meu lado direito estava um homem de castanho – mais tarde soube que era do Benfica, a quem, durante o jogo pedi oito ou nove cigarros, que os nervos eram muitos e eu me tinha esquecido de comprar os meus.
O ambiente do estádio era indescritível. Sem exagero, cada pessoa tinha pelo menos uma bandeira do Porto nas mãos, porque muitos tinham duas. Nessa altura ainda não se usava muito o cachecol, e as bandeiras podiam entrar nos estádios com haste de madeira.
A três ou quatro minutos da entrada dos jogadores, o estádio inteiro gritava Porto!, Porto!, ora os da metade sul do relvado, ora os da metade norte. Ninguém conseguia falar com ninguém, tal o barulho ensurdecedor.
Recordo-me que o Rodrigues, um dos benfiquistas que me acompanhava, exclamou: “E chamam por eles!”, exultando com aquele cântico e confessando nunca ter visto nada de semelhante na Luz.
A entrada em campo dos jogadores do Porto levou à assistência a um êxtase total.
O calor subia, e algumas pessoas, desidratadas ou comovidas, começaram a ser transportadas de maca para o exterior do estádio, e dali para ambulâncias.
Voluntários da Cruz Vermelha, munidos de mangueiras, davam água às pessoas do peão, ou regavam-nas, a seu pedido, para melhor enfrentarem a sede e o calor.
As equipas alinharam da seguinte forma: FC Porto – Fonseca na baliza, Gabriel a lateral esquerdo, Simões e Freitas (depois Vidal) no centro da defesa e Murça a lateral esquerdo; Rodolfo, Octávio, Ademir e Oliveira, no centro do terreno, Duda e Gomes no ataque. Benfica: Fidalgo na baliza, Bastos Lopes a lateral esquerdo, Humberto Coelho e Eurico no centro da defesa e Alberto a lateral direito, Pietra, José Luís, Toni e Shéu, no centro do terreno, Nené e Chalana no ataque.

Fotografia tirada no dia do jogo de Ademir
Fotografia tirada no dia do jogo de Ademir

Começou o jogo do século e, aos três minutos, num puro golpe de infelicidade, Simões marcou um golo na própria baliza, após um cruzamento do benfiquista Bastos Lopes.
O silêncio caiu sobre o estádio, como um cutelo de magarefe sobre um pedaço de carne no talho.
As contas vieram à cabeça de todos. Se o Benfica ganhasse, ficaria com 48 pontos – nessa altura a vitória valia dois pontos e o empate um – o Porto com 47, e dificilmente o Benfica não seria campeão, com apenas mais dois jogos pela frente.
E em silêncio se manteve o estádio, num silêncio aterrador até sete minutos do fim.
Aos oitenta e três minutos foi marcado um livre contra o Benfica, ligeiramente sobre a esquerda do ataque portista. Ademir foi encarregado de marcar, marcou, a bola bateu na barreira e voltou para trás, onde, de novo Ademir, ao primeiro toque, rematou, fazendo-a passar por entre uma floresta de pernas, até embater impetuosamente no fundo da baliza do Benfica.
O que depois se passou, durante dois ou três minutos, eu não sei, porque, caído no peão, me vi aflito para tirar duas ou três pessoas de cima de mim, mas o meu pai, que em Trás-os-Montes seguia o jogo pela rádio – a televisão ainda não transmitia os jogos do campeonato - contou-me mais tarde que a explosão do estádio lhe tinha parecido um tiro de canhão, ali ao pé do ouvido.

Ademir

Quando enfim me levantei, as bancadas não se viam, de tantas e tantas bandeiras a acenar. No relvado um magote de jogadores abraçava efusivamente Ademir.
Foi então que reparei que o cavalheiro à minha direita, a quem eu esmifrara uma quantidade de cigarros, me olhava perplexo, porque só nessa altura se apercebeu de que eu não era benfiquista.
O jogo terminou com o resultado de 1-1, pelo que o Porto se mantinha com um ponto à frente do Benfica (48-47).
Oito dias mais tarde, em Lisboa, pela rádio, assisti ao empate do Porto na Académica, por 0-0. Embora o Porto tivesse jogado muito bem, não conseguira ir além do empate, sendo que a jogada de maior perigo do jogo foi um remate de Freitas do meio campo, que embateu com estrondo bem no meio da trave da baliza da Académica. Na Luz o Benfica ganhara naturalmente ao seu adversário do dia.
49-49 era agora a posição pontual das duas equipas.
Na última jornada o Porto ganhou nas Antas ao Braga por 4-0, enquanto o Benfica foi ganhar ao Rio Ave por 1-2, onde chegou a estar a perder por 1-0.
51-51 foi a pontuação das duas equipas no final do campeonato, campeonato que o Porto venceu por força do seu “goal avarige”, 81-21, contra 56-11 do Benfica.
Terminara para o Porto o enguiço de dezanove anos sem ganhar o campeonato e a hegemonia do clube do regime.
Deixo aqui a classificação do campeonato de futebol da época 1977-1978:
CLASSIFICAÇÃO
TOTALCASAFORA
PJVEDGVEDGVEDG
5130227181-21132055-1095126-11
5130219056-11123031-696025-5
4230194763-30113136-1181627-19
3830166842-27112230-854612-19
3630148825-2194215-354610-18
31301271133-2884319-1043814-18
28301081236-3865422-1743814-21
26301141541-4992428-21221113-28
26308101229-4075320-131599-27
10º
2530971426-3874418-1623108-22
11º
2530891325-3664512-1025813-26
12º
2330871522-4573515-1214107-33
13º
2330871529-3974421-1713118-22
14º
2230861630-5282521-2104119-31
15º
2130691523-5156416-1813117-33
16º
1230522324-5952815-1800159-41

Que bem me lembro, carago!





11 comentários:

Anónimo disse...

Recordar é viver! Também eu vivi e de que maneira isso e como nunca esquecerei!!! Foi o início duma nova vida.

Dragus Invictus disse...

Bom dia amigo Azulibranco,

Fantástica recordação nos trás aqui.

Que retrato bonito de como se deu o 25 de Abril no futebol Português.

Nasci em 23 de Dezembro de 1978, e desde então só tenho vivido imensas alegrias.

Dou muito valor aos portistas, que em tempos difíceis, encarnaram como nenhum outro o "Ser Porto".

Hoje me dia é fácil ser-se Porto. É uma questão de ser dos que são mais fortes, mais brilhantes, mais gloriosos e que escrevem páginas épicas no desporto rei.

O senhor em particular, a viver em Lisboa, onde os que partilhavam o seu amor eram escassos, viveu como ninguém o 25 de Abril do futebol português.

Obrigado por trazer a nós mais novos esta recordação.

"Uma história vivida não tem tempo de calendário - tem-no só no que se viveu." Vergílio Ferreira

Abraço

Paulo

Azulibranco disse...

Armando Pinto, foi de facto o início de uma nova era.

Azulibranco disse...

Obrigado pelas suas palavras, amigo Dragus, e pela belíssima citação de Vergílio Ferreira.
De facto posso dizer que estive no 25 de Abril do futebol, bem lá por dentro.

Anónimo disse...

Excelente relato do fim da ditadura no futebol, até me comovi ao lê-lo.
Nessa altura tinha 7 anos e por razões profissionais os meus pais, eu e os meus 7 irmãos fomos viver para perto de Lisboa, para a linha de Cascais, desse ano tenho uma lembrança espectacular do jogo no antigo estádio da luz, slb-Porto fui com os meus irmãos bastantes mais velhos e todos com bandeiras do Porto na altura achavam-nos graça, foi nesse jogo que o Toni partiu a perna ao Marco Aurélio e empata-mos 1-1, esteve todo o jogo a chover torrencialmente no fim do jogo passa-mos pela ambulância e lembro-me bem que um dos meus irmãos espreitou para dentro da ambulância e viu que era o Marco Aurélio e gritou lá para dentro MARCO AURÉLIO VAMOS SER CAMPEÕES!!, depois fomos ao califa café onde iam todos os lampiões, meus irmãos conheciam alguns e na altura como disse achavam-nos graça, também me recordo do que os lampiões diziam para os meus irmãos, coitado do miúdo vai ser um desgraçado e o mesmo irmão disse, este vai ser um Portista dos mais fortes e acertou pois apesar de ser dos poucos nunca desisti e sempre usei a camisola do F.C.PORTO nas aulas de ginástica e no futebol, tive um treinador que me chamava rolando o loiro e outro treinador que me chamava Cubilhas poruqe era bom de bola, sou loiro, lol
Outra história engraçada é os meus pais jogavam aos fins de semana cartas, o Pai jogava bridge e a Mãe canastra e no seu grupo de amigos havia um que tinha um filho da minha idade e Benfiquista, um dia pediu ao meu Pai para me levar ao estádio da luz e meu pai deixou, lá fomos os três ver um Benfica-Salgueiros acho eu, que o slb ganhou 3 ou 4-1, no fim o amigo do meu Pai ofereceu-me uma bandeira e um chapéu do slb, que eu por boa educação aceitei, passado 1 dia fiz uma fogueira no quarto com o chapéu e a bandeira, claro que fiquei de castigo durante 3 semanas, mas senti-me muito feliz, ainda para mais meus irmãos diziam-me é assim mesmo, fizeste muito bem o que me deixava orgulhoso.
Nessa altura era difícil ser Portista lá em baixo não havia quase nenhuns e mesmo assim na linha sempre aparecia um ou outro, depois fui crescendo e já era-mos muitos e voltei ao Porto.
Desculpe este texto tão grande mas o seu post fez-me relembrar estes episódios de um miúdo Portista em Lisboa(linha de Cascais)

Azulibranco disse...

Abençoada seja a sua infância, meu caro anónimo, onde o seu portismo se enraizou.
Muito obrigado pelas suas palavras que, como as minhas o comoveram, também elas me comoveram a mim.
Nós,que conhecemos aquele tempo, vivemos de uma maneira especial os dias do Porto de hoje.
Grande abraço, e continue por aqui.

Penta disse...

belas memórias.
muito obrigado! a todos por partilharem tantas memórias.

fico muito grato a quem tem mais experiência de portismo do que eu, pois é convosco que aprendo o significado do "ser Porto!".

somos Porto!, car@go!
«este é o nosso destino»: «a vencer desde 1893»!

saudações desportivas mas sempre pentacampeãs a todas(os) vós! ;)
Miguel | Tomo II

Azulibranco disse...

Obrigado, Miguel.

Anónimo disse...

Essa fotografia do Benfica não é alusiva a esse jogo, porque o guarda-redes titular do Benfica nesse jogo do Ademir foi o António Fidalgo.

Fica a rectificação, e um Bem-Haja a todos.

Anónimo disse...

Gostaria de ver a equipa do Benfica desse jogo, uma vez que a foto do Benfica postada não é a referente ao jogo do Ademir, mas da época seguinte, uma vez que o guarda-redes titular nesse jogo do Ademir foi o Fidalgo. O Nené também jogou a titular.
Saudações a todos.

Anónimo disse...

http://i60.tinypic.com/15p0ksi.jpg Aqui está o link com a equipa do Benfica desse jogo.

Abraço a todos.